domingo, 8 de outubro de 2017

O ÚTERO E O ESPELHO

_ O ÚTERO E O ESPELHO

I.
úteros pequenos definhando
em frente ao espelho:
nunca houve um poema
alegre em corpo de mulher
risos que empenham vaidades
suspiram alento no escuro
de onde nascem as irmandades

seco
cai o útero em frente a esquina
mulher que se preze
não se confunde às gôndolas do porto
não sai com nenhum marujo
não bebe pinga nem rum

desço meu último gole
como se fosse esterco
mulheres sós são
sonhos sem telhas

mulher que se preze
adora teto ao invés de festejos
são tempos em que não há
espelhos
(somente poucos)



II.

Porcos e crianças com fome
fazem parte do cenário
e o rio não leva tanto
o quanto se pensa
nenhum poema jamais
leva a água que invade
os poros que não fogem à sua responsabilidade
o rio esteve:
molha a mulher retoma os laços
mulher é um estado do pensamento
é um meio
para Deus fingir para todos que a água é macho

úteros caídos no chão
me vejo no espelho: temo
as vozes que vociferam contra as águas
e que repetem como as fábricas em sinfonia:
não és bela
são seus dedos ensejos pelos seios
todo o leite não basta
nesse mundo vencem apenas
os surdos e aqueles que por paixão
se tornam cegos
como uma cigana
a ver seu destino em três pedidos mal feitos
- não me rendo –



III.

Mulher que preze
anda armada até os dentes
escuto todas as vozes
que falam em meu nome

IV.

úteros caídos no chão e
mãos erguidas para o céu
a palavra retoma seu curso
sua performance nunca será alegre

corre mulher de três tetas!
corre e impeça esse poema de sangrar
diga as amigas
que agora tudo o que molha
secou

sangrando como fêmeas da linguagem
estéreis
putas
rés

úteros que rastejam até o mar
e morrem na praia
quando deixam de sangrar
mulher é fome do que ainda virá
até Deus e os demônios temem se afogar
já não há mais com o que se preocupar
sustentamos insanas
potes de barro maiores que nossos desejos
sonhos que não se
erguem mais
nem tijolo por tijolo
nem pedra sobre pedra
a mulher se contenta;

contorno meus lábios com lápis de olho
e seu sorriso eu o escondo
(era um menino)
Seu reflexo é mais do que peso
o útero e
o espelho
degladeiam-se até a morte
suam até o desespero
me abandonam
como o último homem também o fará
menos as forças que regem o universo


isso nós temos que carregar

clarice lis marcon

O ÚTERO E O ESPELHO


I.
úteros pequenos definhando
em frente ao espelho:
nunca houve um poema
alegre em corpo de mulher
risos que empenham vaidades
suspiram alento no escuro
de onde nascem as irmandades

seco
cai o útero em frente a esquina
mulher que se preze
não se confunde às gôndolas do porto
não sai com nenhum marujo
não bebe pinga nem rum

desço meu último gole
como se fosse esterco
mulheres sós são
sonhos sem telhas

mulher que se preze
adora teto ao invés de festejos
são tempos em que não há
espelhos
(somente poucos)



II.

Porcos e crianças com fome
fazem parte do cenário
e o rio não leva tanto
o quanto se pensa
nenhum poema jamais
leva a água que invade
os poros que não fogem à sua responsabilidade
o rio esteve:
molha a mulher retoma os laços
mulher é um estado do pensamento
é um meio
para Deus fingir para todos que a água é macho

úteros caídos no chão
me vejo no espelho: temo
as vozes que vociferam contra as águas
e que repetem como as fábricas em sinfonia:
não és bela
são seus dedos ensejos pelos seios
todo o leite não basta
nesse mundo vencem apenas
os surdos e aqueles que por paixão
se tornam cegos
como uma cigana
a ver seu destino em três pedidos mal feitos
- não me rendo –



III.

Mulher que preze
anda armada até os dentes
escuto todas as vozes
que falam em meu nome

IV.

úteros caídos no chão e
mãos erguidas para o céu
a palavra retoma seu curso
sua performance nunca será alegre

corre mulher de três tetas!
corre e impeça esse poema de sangrar
diga as amigas
que agora tudo o que molha
secou

sangrando como fêmeas da linguagem
estéreis
putas
rés

úteros que rastejam até o mar
e morrem na praia
quando deixam de sangrar
mulher é fome do que ainda virá
até Deus e os demônios temem se afogar
já não há mais com o que se preocupar
sustentamos insanas
potes de barro maiores que nossos desejos
sonhos que não se
erguem mais
nem tijolo por tijolo
nem pedra sobre pedra
a mulher se contenta;

contorno meus lábios com lápis de olho
e seu sorriso eu o escondo
(era um menino)
Seu reflexo é mais do que peso
o útero e
o espelho
degladeiam-se até a morte
suam até o desespero
me abandonam
como o último homem também o fará
menos as forças que regem o universo


isso nós temos que carregar

clarice lis marcon

sexta-feira, 27 de maio de 2016

O Brasil do Zika e a Zika do Brasil
          

A notícia de que 150 cientistas de várias partes do mundo sugeriram o adiamento ou mesmo a transferência das Olimpíadas do Brasil no mês de agosto em função dos riscos provenientes da não controlada epidemia de Zika Vírus caiu como uma bomba no já aturdido outrora país da felicidade e do futebol.
O Brasil vive um momento singular em sua história. No campo político vive uma instabilidade em níveis de 20, 30 anos atrás. No âmbito econômico vive mais uma de suas crises ciclicamente formatadas por contingências de um jogo em que sempre somos o jogador mais frágil, sempre estamos jogando o Brasil x Alemanha aí. No social a parada é mais complexa. Se por um lado experimentamos a ascensão social de milhões de pessoas à equipamentos sociais e econômicos dos mais elementares, por outro convivemos com o crescente acirramento dos ânimos entre a Casa Grande e a Senzala do século XXI, num fenômeno secular, cíclico e recorrente de ódio, preconceito e racismo. Um verdadeiro barril de pólvora. Especialmente porque a tal ascensão se deu apenas no âmbito do consumo, ou seja, as pessoas dessas classes “fantasmas” para a maioria da população “tradicional” passaram a consumir produtos e serviços que até então nunca fizeram parte de seu cotidiano. Ora, consumir não quer dizer muita coisa. Você apenas “dá o peixe”, joga a isca no caso... não ensina o jogador a pescar com um palito de dente nesse mar de tubarões branco famintos. Ah, a meritocracia...
Bom, mas isso tudo pra dizer que no meio de toda essa verdadeira catarse teríamos um motivo para anestesiar nossa alma ainda no ano de 2016. Os jogos olímpicos do Rio de Janeiro poderiam ser um lenitivo, a propaganda de margarina nos filmes de terror. Não pode mais. Ela também entrou no filme.
         E quem são Alfred´s e Zés dos Caixões pra escrever um roteiro assim. Em 23 de maio de 2016, ou seja, há pouco menos de três meses do evento, leio a carta assinada por 150 cientistas de várias partes do mundo "aconselhando" o adiamento ou mesmo a transferência dos jogos olímpicos do Rio de Janeiro. Alegação? o risco de uma pandemia do Zika Virus. Esse posicionamento, é bom que se diga, foi solicitado pela OMS no intuito de zelar pela saúde do planeta.
Os aportes teóricos de historiador das doenças me permitem fazer algumas ponderações a respeito da carta, e sobretudo a respeito do que está por trás da carta. Em primeiro lugar ela denota, embora de forma indireta, que a comunidade científica mundial observa com olhos críticos os confusos caminhos traçados pela sociedade brasileira no que tange às questões de ciência e tecnologia nos últimos anos. A reportagem de capa da revista science latino-americana da última semana de maio é a maior prova disso (http://science.sciencemag.org/content/352/6289/1044).
Em segunda análise, ela acaba corroborando com uma visão eurocêntrica da relação saúde/doença no mundo, que já é bastante relativizada em diversos círculos sociais da ciência há décadas. Em outras palavras: reforça a ideia de que "os outros" possuem a doença, e não vale a pena "nós" irmos lá nos "contaminar". Não há sequer o receio em mascarar esse sentimento quando se afirma que um "risco desnecessário é colocado quando 500 mil turistas estrangeiros de todos os países acompanham os jogos, potencialmente também adquirem o vírus e voltam para suas casas, podendo torná-lo endêmico".
Ou seja, ainda estamos na mesma ideia de que "não existe pecado do lado de baixo do Equador". Esse é mais ou menos o nível do argumento para compreender tal posicionamento. Sua fragilidade reside não apenas na constatação histórica de que várias doenças foram gestadas a partir da Europa para o "novo mundo", mas também em aspectos subjetivos da questão. O medo de uma grande epidemia que ceifaria a humanidade é algo milenar, e já foi objeto de interessantes análises históricas. Jean Delumeau, por exemplo, discute essas questões em "A história do medo no ocidente", deixando claro que a simples conjectura de uma pandemia que acabe com a vida na terra perpassa nosso imaginário coletivo há milênios. Não é de agora.
      É um problema de saúde-pública dos mais sérios? Sem a menor dúvida. Precisa de estudo, pesquisa, aprofundamento técnico de toda espécie? Idem. Agora daí a vetar a realização de um evento global e da relevância das Olimpíadas vai uma grande diferença. Abissal diferença. 
      Parece que querem nos tirar até o prazer do entretenimento desportivo mundial previsto para as terras tupiniquins no histórico ano de 2016. 
Razões que justificariam a transferência do evento não faltam, também é importante que se diga. Seja por inúmeras denúncias de superfaturamento em obras, pela assustadora inconsistência do argumento do "legado das olimpíadas" para o país, ou até mesmo pela lamentável contingência política que experimentamos nesse momento. Mas é importante lembrar que esses mesmos fenômenos já ocorreram em outros locais de maneira até mais exacerbada, e não foram suficientes para a tomada de uma atitude tão drástica, e de consequências tão avassaladoras.
Chama a atenção, enfim, o papel da ciência nesse processo. Sendo chamada ao baile, para "justificar" o adiamento ou mesmo a transferência de um evento dessa magnitude há menos de 3 meses de sua execução em função de argumentos discutíveis. 
Ao mesmo tempo chama a atenção e nos dá profunda tristeza constatar que o Brasil não possui mecanismos capazes de produzir não apenas respostas práticas à epidemia de Zika Vírus, mas também argumentações que sejam capazes de dirimir tais incertezas. E que, além de tudo, ainda observamos o fim de inúmeros atores governamentais que poderiam exercer esse papel, como o já extinto Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Ao extinguir tal órgão de maneira tão absurda, nosso país jogou uma pá de cal na confiança governamental na ciência e tecnologia produzidas por aqui, sendo visto, assim, como um importante sinal para a comunidade internacional adotar esse tom mais duro em relação à dificuldade da realização do evento. 
       Com tristeza observamos a sociedade brasileira acabou acreditando na ideia do “complexo de tostines” (vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais) construída ao longo de décadas com relação à sua ciência. Ou seja, na ideia de que a ciência brasileira não produz porque não há investimento ou não há investimento porque a ciência brasileira não produz. Enquanto isso, parece que não teremos o direito nem do nosso comercial de margarina nesse filme de terror que se transformou o 2016. 


  
   

terça-feira, 17 de junho de 2014

Ah, é sim... - A memória virtual, atual e o ofício do historiador




Estupefatos com a notícia da última semana, de que o presidenciável Aécio Neves impetrou – sabe-se lá como – um mandato de busca e apreensão dos computadores do PPGHIS da UFRJ, inclusive com uma queixa-crime por difamação direcionada à diretora da unidade, a profa. Mônica Grin Monteiro de Barros, esse blog gostaria de fazer algumas reflexões esparsas, quase ao leu.

Aqui já mencionamos em outros momentos a importância de o historiador se dar conta o quanto antes da singularidade tecnológica das fontes históricas que pesquisará no futuro (http://quemquerciencia.blogspot.com.br/2012/05/o-historiador-externinador-do-futuro.html). Agora gostaríamos de chamar a atenção para a singularidade do referido episódio envolvendo um personagem no mínimo controverso da política brasileira. A atitude do Senador da República pode ser compreendida como mais uma tentativa deliberada de manipulação da memória virtual. Pra quem já quis proibir o Google de mostrar predicados “não aconselháveis” de sua figura “controversa”, agora nos vemos atônitos com mais essa notícia. Convido o querido leitor a entrar agora no google, e digitar a palavra Aécio Neves, e esperar as relações propostas pelo site ao termo (escolhidas de acordo com o histórico dessas associações feitas por todos os que se prestaram ao mesmo ato, por ordem de relevância das mesmas). "Aécio Neves bêbado", "Aécio Neves corrupção", são os primeiros. Acha mesmo que um presidenciável vai querer isso? 

Pra que o leitor entenda direito: há uma milícia virtual a serviço desse representante seu – e meu – que monitora – pra não dizer censura – o conteúdo sobre ele postado na rede mundial de computadores. Os que emitem opiniões negativas sobre ele, são caçados, cerceados, ameaçados, sem critérios, sem eira-nem-beira. Especialmente porque a legislação que rege tais atividades ainda não foi suficientemente arregimentada. Ou seja, em terra de ninguém, quem sabe fazer usucapião é dono.

É fundamental que a sociedade se dê conta dessa manipulação explícita da memória, realizada nesse caso em sua instância virtual. Não vamos entrar aqui em nenhum mérito político. Não temos nada contra o excelentíssimo Senador. Afinal, vivemos em uma democracia, conceito e princípio tão esquecido nos últimos tempos. Todos, temos o direito de nos expressar, expressar nossas opiniões, de ter acesso à informação, etc. A atitude do Senador Aécio Neves é um alerta aos historiadores, que fazem da memória um instrumento de análise, de inserção profissional, de trabalho enfim.

Não sejamos inocentes a ponto de pensar que tal manipulação memorial nunca tenha ocorrido. É evidente que não. Quem vive num país forjado pelas Organizações Globo não pode ser inocente a esse ponto. Ainda mais quem vive ou viveu em Minas, e vê, lê, escuta e sente tal manipulação em todos os mecanismos de imprensa. O passo dado pelo presidenciável Aécio Neves vai além. Tenta chegar num terreno até então “democrático”, da rede mundial de computadores. Tenta escarafunchar e censurar os que supostamente difamam a imagem – ilibada, pura, casta, irrepreensível, magnânima, auspiciosa, brilhante como louça de propaganda da Bombril – desse cidadão. É mais do que certo também que essa “democracia” romantizada na internet já foi pro espaço há muito tempo. Não se trata disso. Investe-se milhões em maneiras de controla-la cada vez mais, especialmente porque crimes graves são cometidos aqui. E, claro, tais crimes precisam ser punidos. A questão é que não existem critérios estabelecidos quando a questão é de “opinião”. E aí mora o x da questão. Se não há critérios, haverá gente esperta fazendo bom uso de sua esperteza!  

Antes de qualquer coisa, fica aqui nossa solidariedade aos colegas do PPGHIS da UFRJ. Fica também o convite à reflexão sobre a singularidade da profissão histórica no século XXI. Pensar em memória não pode mais ser algo feito à base dos textos “memoráveis” de Le Goff e Pierre Nora. Não! A memória é construída num processo temporal e socialmente fluido demais. A dimensão do futuro precisa ser incorporada à ela. O caso do personagem Aécio Neves deixou isso límpido como água, pra quem quiser ver.

E ainda é importante pensar: isso porque ainda estamos na campanha eleitoral!

Quem disser que isso não se parece com a censura ditatorial, que tanto nos marcou, convido a assistir ao vídeo abaixo. Ele seria possível em um contexto democrático, na acepção do termo?



Chico Buarque de Holanda, pra citar apenas um raso exemplo, já havia nos brindado com verdadeiras pérolas da música brasileira no contexto ditatorial. Ironia, jogos de palavras, humor, etc., passavam uma mensagem quase subliminar, que misturava arte e crítica ácida a um regime cerceador de mentes e corpos. A semelhança, por mais anacrônica que possa parecer a princípio, precisa ser considerada. No mínimo.

Agora, discuta conosco: vc acha que a memória virtual é manipulada, controlada sabe-se lá por quem? Ah, é sim!... Te dá medo pensar nisso? Então, pensemos em conjunto, DEMOCRATICAMENTE, soluções para o problema!

domingo, 8 de junho de 2014

Ciência na Copa: um exoesqueleto entre ciência e sociedade



12 de junho de 2014 tem tudo para marcar milhões, quiçá bilhões de pessoas ao redor do planeta. Será a abertura da copa do mundo, no “país do futebol”, certo? Sim, certo! Mas não apenas por isso. Também nesse dia um pesquisador brasileiro radicado nos EUA, o “país da ciência” irá apresentar ao mundo o que tem tudo para significar um avanço científico notável: um exoesqueleto será o responsável por fazer um tetraplégico dar o “pontapé-inicial” da copa das copas.
      
Lindo, não?! Assistindo aos telejornais – esportivos ou não – o assunto é sempre abordado, num misto de curiosidade e patriotismo ingênuo (quem nos dera se tal tecnologia pudesse ter sido desenvolvida aqui). O cientista é brasileiro, dizem uns. É palmeirense roxo, dizem os mais exaltados. Não vamos entrar no mérito pessoal da figura de seu expoente, Miguel Nicolelis, que chegou até mesmo a firmar o que chamou de “Manifesto da Ciência Tropical” há alguns anos atrás (https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/25621/1/Rog%C3%A9rio_Barbosa_FEUC_2014.pdf)
      
O que nos chama a atenção é a frase final de quase todas as reportagens abordando o assunto: “A intenção do projeto é a de aproximar a ciência da população”. Ah, vá!... que ciência, de que população, cara-pálida?!
   
Vivemos num país em que a ciência é tratada com desrespeito por universidades, por políticos, e até mesmo por “cientistas” ao que parece. Vivemos num país que assistiu um de seus presidentes dizer com todas as letras que o “Problema dos Transgênicos” – borbulhante e seriamente travado em várias partes do mundo – era coisa de cientistas, e a eles cabia a decisão quanto aos rumos da questão por aqui. Vivemos num país, por fim, em que a ciência é coisa de “gente doida”, gente de branco, branca, rica, estrangeira, que nos diz o que fazer, como fazer, onde fazer, etc. Em suma: ciência é algo estereotipado, na mais pejorativa acepção do termo.


O projeto de Nicolélis se enquadra no que se poderia chamar de “Divulgação Científica”, que em outros momentos já foi chamado "Difusão Científica", atividades desenvolvidas desde o nascimento da “Ciência Moderna”. Ocasiões de gala eram preparadas para demonstrações pomposas dos segredos da natureza para o “público leigo”. De lá para cá, todo “avanço” científico passou a ser mais ou menos acompanhado por uma sociedade mais ou menos por eles interessada. Mais ou menos a relação do Vampeta com o Flamengo: "fingem que me pagam e eu finjo que jogo!".



No século XX observam-se tentativas teóricas mais rebuscadas de compreensão dessa relação envolvendo ciência e sociedade. Modelos são desenvolvidos para tentar compreendê-la. Bruce Lewenstein, por exemplo, diz que o “Modelo do Déficit” é o Rei dessa Praia. O cientista, dotado de um saber hermético e rebuscado, usa de sua benevolência angelical e brinda a todos por ele escolhidos com os segredos da ciência que pretende (ou quer) demonstrar. Já se viu nessa situação? Se vê nessa situação no dia 12? Qual a diferença dela para esta aqui, em que Eliana e seus cientistas adestrados mostram como a voz de Alexandre Pires se modifica através dos “mistérios da ciência”? https://www.youtube.com/watch?v=HfKp7Q91Bs0

A situação porém começa a se modificar. A sociedade se desenvolve dinâmica demais para aceitar por muito mais tempo tal relação platônica. Gradativamente vai surgindo a área da Comunicação Científica, que tende a abarcar uma relação mais homogênea entre ciência e sociedade. Comunicar significa dialogar, dialogar significa escutar e reconhecer o outro. Na divulgação científica do “déficit” isso não acontece satisfatoriamente, do ponto de vista da sociedade. Esta última está sempre passiva, assistindo e batendo palmas para o show que o cientista apresenta.

Já imaginou o que significa para um cientista ser aplaudido por um estádio de futebol, na abertura de uma copa do mundo? Mais uma vez afirmamos, não se trata de dizer que Nicolélis é oportunista ou algo que o valha. Nem se o conhecêssemos pessoalmente faríamos tal julgamento. O que ele quer pode – e deve – ser, de fato, levar a ciência para a sociedade. Deve ter mesmo as melhores intenções! Só estamos chamando a atenção aqui para o fato de que o que ele acaba fazendo é cristalizar o cientista na posição de detentor de um saber inatingível e a sociedade de posição de espectadora de um espetáculo cujo enredo ela não participou, e na esmagadora maioria das vezes não lhe interessa. Ora, mas fazer isso é melhor do que nada, dirá você mais exaltado! Sinceramente, acreditamos que não. O nada é um campo mais profícuo do que um outro já semeado por sementes transgênicas da Monsanto.

Por que não chamar para o “Pontapé Inicial” da copa algumas crianças que tiveram sua expectativa de vida aumentada em alguns meses pelas pesquisas do GENETON, o primeiro laboratório farmacêutico sem fins lucrativos da história (http://www.genethon.fr)? Por que não chamar membros das centenas de “Conferências de Consenso” existentes em várias partes do mundo, que se informam, discutem e tomam decisões acerca dos rumos das políticas públicas envolvendo a ciência e sua vida cotidiana? Eles também “aproximam a ciência da sociedade”, certo? Ora, mas são iniciativas europeias, que dificilmente serão implantadas num país como o nosso... sem cultura, sem infraestrutura, etc., certo? Pode até ser verdade. Mas não nos esqueçamos que a ciência se faz através de problemas. Logo, meu amigo, o Brasil é campo fértil pra ela! E mais: haveria oportunidade melhor para levantar tais bandeiras do que na abertura de uma copa do mundo por aqui?  

A ciência não pode mais ser vista como imaculada. O cientista não pode mais ser encarado ou como santo ou como o louco que “de tão inteligente é meio bobão”. E, especialmente, a sociedade não pode mais ficar estática sentada no sofá engolindo tudo goela a baixo o que esses cientistas fazem e divulgam. 

A culpa não é de Nicolélis, enfim. Não se trata de culpabilizar ninguém. O que precisamos é construir uma relação, DE FATO, entre ciência e sociedade. Como? De que jeito? Com quais atores?...    

Pronto, agora você pode se deixar levar e dizer a frase que está doido para dizer: deixa eu ver meu futebol em paz! A copa vai começar! Sai daí o exoesqueleto de m...

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Mais Médicos: médicos e médicos



Nossos amigos médicos já tiveram a oportunidade de se manifestar aqui no Blog quando, há quase dois anos, versamos sobre o aumento de quase 3 mil novos “postos de estudo” – vagas – nos cursos de medicina de todo Brasil (http://quemquerciencia.blogspot.com.br/2012/06/v-behaviorurldefaultvmlo.html)
Quase tivemos nossas cabeças dependuradas em praça pública quando dissemos que o médico era um tecnólogo, e que não poderia mais ficar esperando pacientes em seus consultórios com ar condicionado, prontos pra receitar um medicamento da empresa X, que lhe oferece alguns “incentivos”; ou que a lei inexorável de oferta-procura se incumbiria de acabar com a insensatez de observar que prefeituras do interior do Brasil se esforçavam pra contratar médicos por 50 salários mínimos. Com a formação anual de 3 mil dessas “peças de reposição”, logo-logo haveria tecnólogos nesses locais ganhando 15 salários mínimos (puxa, que afronta...)
Pois muito bem. Passado esse tempo muita coisa aconteceu. Como se não bastasse esse aumento na formação de novos profissionais aqui no Brasil, o governo ainda tomou a decisão de incentivar a importação de profissionais do exterior pra sanar o déficit de, segundo cálculos do governo há época, cerca de 10 mil homens de branco.
Existem algumas questões nesse processo que merecem atenção. Pense comigo: qual o perfil profissional desses médicos estrangeiros que aportam em terras tupiniquins? Cubanos, em sua maioria. Nada mais lógico, diria nosso intelectual maior, Diogo Mainardi... troca de favores entre governos da ultrapassada esquerda. Será que é só isso? O que tem os médicos cubanos que os dos EUA, da China, do Chile, do Peru não tem?
Pra responder a essa pergunta, precisamos de um parênteses histórico em concepções de medicina específicos. Médico, como já dissemos no outro post, era até o século XIX um curandeiro melhorado. Só a partir dos oitocentos eles começaram a ganhar o status de salvador das pátrias que observamos hoje.
Cara, eles podiam agora curar doenças milenares com medicamentos simples, ou mesmo ações – ou, para delírio dos mais exaltados: técnicas – simples. A luz da ciência finalmente chegava para iluminar o caminho da humanidade. O laboratório, os micro-organismos passaram a ser mais importantes do que os organismos. Não por coincidência surgiria exatamente no século XIX uma corrente científica que buscava problematizar o caráter social da medicina na Europa: a assim denominada “Medicina Social”. Um de seus principais ícones, o alemão Rudolf Virchow, chegou a dizer que a medicina era uma ciência tão social quanto a história ou a filosofia.
Os micro-organismos deviam continuar sendo estudados. Afinal eram eles os causadores das doenças. Mas não deveríamos nos esquecer de que as doenças foram causadas por fatores sociais. Por condições de vida, de salubridade, de alimentação, etc.
Algum tempo depois surgiria a apropriação norte-americana para o problema. O livro intitulado “Medical Education in the United States and Canada” de Abraham Flexner foi publicado em 1910. Nascia uma concepção de medicina que todos conhecemos hoje: centrada no hospital, no doente, na doença. Em linhas gerais, era um estandarte dos amantes dos micro-organismos. Microscópios ao alto, bradavam! Concebia-se a indústria da medicina. Medicamentos, máquinas, técnicas cada vez mais rebuscadas em busca das verdades escondidas nos micro-organismos. Pelo bem da humanidade.
Essas duas concepções de medicina se tornaram concepções pedagógicas de formação do profissional médico ao longo do século XX. Questões políticas das mais complexas fizeram com que o globo terrestre se dividisse entre esses dois paradigmas. O mundo capitalista ocidental, claro, pendeu para o lado Yanke-Industrial. O socialista para o Europeu-Social.
Não se trata aqui de afirmar que um é melhor do que o outro. Apenas de constatar que os médicos cubanos são formados sob a égide da Medicina Social. Todo esse preâmbulo pra dizer que nem de longe pode ser considerada aleatória a atitude do governo brasileiro de trazer quase 6 mil médicos de Cuba. Se ela é certa ou errada é outra questão.
Certa ou errada, ela parte de preceitos teóricos (que no fim das contas também são subjetivos). Parte do princípio de que para o interior do Pará não pode ir um médico que só consiga cuidar de pacientes se puder fazer ressonâncias magnéticas, tomografias, etc... Pra lá tem que ir um médico que consiga compreender socialmente o doente.
Queridos discípulos de Hipócrates. Não estamos dizendo que vocês são insensíveis, ou que não foram capazes de aprender isso – nem que seja na marra. A realidade de um país continental e historicamente corrupto levou a meia-dúzia de dois ou três que até então havia se arriscado em condições de tamanha insalubridade à experimentar coisas que até Deus duvida. O que está em discussão aqui é a atitude do governo brasileiro de buscar mesclar esses dois modelos de medicina. Esses dois perfis profissionais.
E uma coisa precisa ser dita: não somos os únicos a passar por esse processo. Vamos, chame seu amigo que vive no interior da França pelo Skype agora. Ele vai lhe contar como é ser tratado por médicos poloneses, e você vai perceber que há muitas semelhanças entre eles e os discípulos de Fidel. França e Polônia não são governados por esquerdistas lunáticos – by Diogo Mainardi.
Não! Não é necessário, em nome da retórica de “oferecer Infra-estrutura”, comprar 200 aparelhos de Ressonância magnética e envia-los ao interior do Pará. Por vários motivos. Uma que se são 200, enquanto vc lê essas três palavras já são 170, 160, 130 aparelhos... Outra que por trás dessa atitude estão verdadeiros mafiosos que mantém uma das indústrias mais brutais e sanguinárias: a indústria da morte. E por aí vai... Precisamos de medicamentos, de aparelhos de ressonância magnética. Mas também precisamos de médicos que sejam capazes de fazer, de fato, a tão famigerada "Atenção Básica"... de mandar para os hospitais, de fato, os pacientes que deles precisem. O que vemos hoje, em grande medida, é um sistema - como quase tudo em nosso país copiado - que prevê essa atenção básica, mas que, em função de uma formação profissional desconectada da realidade de nosso país, não consegue exercer seu papel.
Precisamos de nossos queridos tecnólogos unidos. Há espaço para essas e todas as outras concepções de medicina que delas surgiram ao longo do último século. Há espaço para todo bom profissional. Em todas as áreas. Se vc é um bom médico-tecnólogo-industrial, vc vai conseguir ter uma vida digna. Se vc foi um médico-tecnólogo-social também. Quem vai dizer isso é o mercado de trabalho. Mercado este que rege todas as outras profissões. Welcome to the Jungle! 

      Sim, nós somos chacrinhas! Viemos pra confundir, não pra explicar! Não existe solução mágica em se tratando de saúde-pública. Sobretudo em um país com características histórico-geográfico-sociais tão singulares como o nosso. Existiram tentativas louváveis. O próprio SUS é louvável. Ah, se não tivéssemos o DNA da corrupção em nossos envoltórios celulares... E a postura do governo brasileiro desde 2010 nesse respeito pode ser muita coisa – inclusive certa ou errada – menos infundada. Discuta conosco, seja vc um tecnólogo ou não! 


terça-feira, 14 de maio de 2013

A primavera de Heródoto



Tudo bem, todos sabem que a esmagadora maioria dos historiadores é afeita às famigeradas “teorias da conspiração”. Esforçam-se por colocar pulgas atrás da orelha de alunos e/ou leitores sobre os temas mais diversos. Verdade? Aí de quem corrobora com essa invenção positivista, dizem os mais exaltados. Correntes historiográficas mais ou menos rebuscadas buscaram espaço acadêmico ao longo do século XX desconstruindo essa Verdade, no singular. Em seu lugar, buscam verdadeS, com um S maiúsculo no final. Buscam maneiras de encontrar fontes, vestígios, personagens, etc., que forneçam mais detalhes, minúcias sobre um fato histórico que, observado de maneira paralela à história oficial, subsidiará uma análise mais embasada, mais fidedigna possível sobre aquele fato feita por ele, um cientista dotado de métodos e técnicas da ciência histórica.

Já abordamos nesse blog as agruras do historiador do futuro. Sua batalha por fontes vai ser árdua e inglória. Aqui nesse post queremos abordar a relação da história – ou, no caso, da narrativa histórica – com um outro assunto, não menos importante, que permeia tanto o ambiente acadêmico quanto o artístico/cultural no planeta atualmente: a narrativa transmidiática. 



Não nos delongaremos muito em explicações sobre o que é exatamente essa ideia, ou esse modelo de organização do pensamento. Aqui nos cabe ressaltar apenas que se trata de uma narrativa que se desenvolve por meio de vários e multifacetados canais midiáticos interligados, que se respeitam enquanto linguagens distintas e se fundem com o objetivo de construir uma compreensão mais ampla do universo narrativo. Exemplos de narrativas midiáticas são vários: se você é fã de alguns seriados americanos mais “antenados”, possivelmente já se pegou visitando a página da série no facebook pra saber mais detalhes sobre os personagens, ou, se sua série for totalmente do século XXI, você pode ter tido acesso, por exemplo, à cena do crime que será exibido no programa de amanhã em 3D, pra que você procure pistas e/ou indícios que lhe ajudem a matar a charada antes de seus amigos quando o programa for ao ar “oficialmente”.



A palavra de ordem é conhecida e ruminada por tudo e todos nos dias atuais: Interação. As “novas mídias” atendem às demandas do público que já não consegue ficar uma hora sentado à frente de uma televisão, assistindo passivamente a qualquer conteúdo, seja ele o melhor conteúdo do mundo! Se você tem filho, irmão, cunhado, vizinho, ou neto adolescente de classe média (que bicho é esse, certo?), certamente já o viu ouvindo música enquanto resolve um exercício de física, assiste futebol na TV do quarto, twitta no tablet e curte a página de Amanhecer no facebook de seu notebook.

Pobre do professor de história desse menino – ou menina, claro – que precisa fazê-lo ficar sentado numa carteira por uma hora, escutando-o falar sobre um fato histórico monodimensional, ou seja, oficial. Acabado. Pobre também do historiador “cientista” que vai sentar na frente de seu computador pra escrever um livro – didático ou não – sobre um tema histórico qualquer, que tenha mais de cem páginas, e que tente narrar um fato histórico segundo os moldes tradicionais.  

A chance dessa geração se interessar por essa História monodimensional diminui proporcionalmente ao ouro em Serra Pelada.

Vejamos um exemplo prático: todos acompanhamos o “atentado terrorista” de Boston recentemente. O espaço aéreo americano foi fechado por horas, o alerta máximo de segurança foi acionado. O estoque de água e alimentos teve de ser reforçado em algumas cidades, num enredo conhecido por todos na terra do Tio Sam dos toc’s psicossociais.

Estereótipos a parte, assistimos à um filme relativamente conhecido. Um fato aconteceu e foi narrado pelos meios “convencionais” de informação. TV’s do mundo todo replicavam a transmissão da CNN, replicavam as informações da CNN: ataque terrorista!

Que fique claro, repudiamos completamente o ato em si!

Horas depois – antes mesmo da prisão dos adolescentes transviados –, dezenas de blogs, alguns em português como o libertar.in, começaram a questionar o “ataque”. Mostravam vídeos feitos pelos celulares dos presentes que mostravam uma realidade diferente da apresentada pela CNN e espelhada por todo globo terrestre. Teoria da conspiração, dirá você!! E novamente eu digo: amigo(a), somos historiadores, adoramos isso! Adoramos quando, por exemplo, um “especialista” mostra que, se uma bomba explode no seu pé e você perde as pernas com o impacto, seu corpo vai estar coberto de sangue, o que não é visto nas imagens que correram o mundo do possível atingido pela bomba terrorista que, aliás é mostrado por outros blogs em fotos, amputado anos antes da maratona. Isso nos leva ao êxtase!

Mas não porque somos do contra, ou queremos ser os chatos da turma, e sim porque vemos nisso uma verdadeira Primavera Heródica (de Heródoto, pai da história). Finalmente vemos um fato acontecer e ser interpretado multi-midiáticamente, multi-modalmente, ou seja lá o nome que queira dar a isso. Sempre sonhamos com a possibilidade de não nos prendermos à história oficial, de encontramos maneiras de dar voz a um número maior quanto possível de atores que vivenciaram um fato histórico. 

O que nos interessa aqui é apenas constatar que o historiador que for estudar o “atentado” de Boston em 2049 deve ter essa possibilidade. Para isso devemos todos, socialmente, lutar. Ele deverá ter acesso aos vídeos dos celulares, aos blogs que questionam versão apresentada na CNN, etc.

Pra isso, precisamos instigar a formação de cidadãos críticos, que não se deem por satisfeitos quando o William Bonner disser “Boa noite”. Precisamos construir uma narrativa histórica tridimensional, que dialogue com nosso tempo.

Pra isso precisamos nos dar conta da multi-midiaticidade do discurso histórico que produzimos – ou deveríamos produzir. As mídias, ou se quiserem: os meios, são muitas(os). O objetivo continua sendo o mesmo: instigar a construção de um conhecimento histórico ativo, que ajude a formar homens e mulheres conscientes de que precisam fazer algo a mais do que respirar, procriar, assistir novela e se embriagar.

Avante, filhos digitais de Heródoto, a primavera está em cores!