sexta-feira, 27 de maio de 2016

O Brasil do Zika e a Zika do Brasil
          

A notícia de que 150 cientistas de várias partes do mundo sugeriram o adiamento ou mesmo a transferência das Olimpíadas do Brasil no mês de agosto em função dos riscos provenientes da não controlada epidemia de Zika Vírus caiu como uma bomba no já aturdido outrora país da felicidade e do futebol.
O Brasil vive um momento singular em sua história. No campo político vive uma instabilidade em níveis de 20, 30 anos atrás. No âmbito econômico vive mais uma de suas crises ciclicamente formatadas por contingências de um jogo em que sempre somos o jogador mais frágil, sempre estamos jogando o Brasil x Alemanha aí. No social a parada é mais complexa. Se por um lado experimentamos a ascensão social de milhões de pessoas à equipamentos sociais e econômicos dos mais elementares, por outro convivemos com o crescente acirramento dos ânimos entre a Casa Grande e a Senzala do século XXI, num fenômeno secular, cíclico e recorrente de ódio, preconceito e racismo. Um verdadeiro barril de pólvora. Especialmente porque a tal ascensão se deu apenas no âmbito do consumo, ou seja, as pessoas dessas classes “fantasmas” para a maioria da população “tradicional” passaram a consumir produtos e serviços que até então nunca fizeram parte de seu cotidiano. Ora, consumir não quer dizer muita coisa. Você apenas “dá o peixe”, joga a isca no caso... não ensina o jogador a pescar com um palito de dente nesse mar de tubarões branco famintos. Ah, a meritocracia...
Bom, mas isso tudo pra dizer que no meio de toda essa verdadeira catarse teríamos um motivo para anestesiar nossa alma ainda no ano de 2016. Os jogos olímpicos do Rio de Janeiro poderiam ser um lenitivo, a propaganda de margarina nos filmes de terror. Não pode mais. Ela também entrou no filme.
         E quem são Alfred´s e Zés dos Caixões pra escrever um roteiro assim. Em 23 de maio de 2016, ou seja, há pouco menos de três meses do evento, leio a carta assinada por 150 cientistas de várias partes do mundo "aconselhando" o adiamento ou mesmo a transferência dos jogos olímpicos do Rio de Janeiro. Alegação? o risco de uma pandemia do Zika Virus. Esse posicionamento, é bom que se diga, foi solicitado pela OMS no intuito de zelar pela saúde do planeta.
Os aportes teóricos de historiador das doenças me permitem fazer algumas ponderações a respeito da carta, e sobretudo a respeito do que está por trás da carta. Em primeiro lugar ela denota, embora de forma indireta, que a comunidade científica mundial observa com olhos críticos os confusos caminhos traçados pela sociedade brasileira no que tange às questões de ciência e tecnologia nos últimos anos. A reportagem de capa da revista science latino-americana da última semana de maio é a maior prova disso (http://science.sciencemag.org/content/352/6289/1044).
Em segunda análise, ela acaba corroborando com uma visão eurocêntrica da relação saúde/doença no mundo, que já é bastante relativizada em diversos círculos sociais da ciência há décadas. Em outras palavras: reforça a ideia de que "os outros" possuem a doença, e não vale a pena "nós" irmos lá nos "contaminar". Não há sequer o receio em mascarar esse sentimento quando se afirma que um "risco desnecessário é colocado quando 500 mil turistas estrangeiros de todos os países acompanham os jogos, potencialmente também adquirem o vírus e voltam para suas casas, podendo torná-lo endêmico".
Ou seja, ainda estamos na mesma ideia de que "não existe pecado do lado de baixo do Equador". Esse é mais ou menos o nível do argumento para compreender tal posicionamento. Sua fragilidade reside não apenas na constatação histórica de que várias doenças foram gestadas a partir da Europa para o "novo mundo", mas também em aspectos subjetivos da questão. O medo de uma grande epidemia que ceifaria a humanidade é algo milenar, e já foi objeto de interessantes análises históricas. Jean Delumeau, por exemplo, discute essas questões em "A história do medo no ocidente", deixando claro que a simples conjectura de uma pandemia que acabe com a vida na terra perpassa nosso imaginário coletivo há milênios. Não é de agora.
      É um problema de saúde-pública dos mais sérios? Sem a menor dúvida. Precisa de estudo, pesquisa, aprofundamento técnico de toda espécie? Idem. Agora daí a vetar a realização de um evento global e da relevância das Olimpíadas vai uma grande diferença. Abissal diferença. 
      Parece que querem nos tirar até o prazer do entretenimento desportivo mundial previsto para as terras tupiniquins no histórico ano de 2016. 
Razões que justificariam a transferência do evento não faltam, também é importante que se diga. Seja por inúmeras denúncias de superfaturamento em obras, pela assustadora inconsistência do argumento do "legado das olimpíadas" para o país, ou até mesmo pela lamentável contingência política que experimentamos nesse momento. Mas é importante lembrar que esses mesmos fenômenos já ocorreram em outros locais de maneira até mais exacerbada, e não foram suficientes para a tomada de uma atitude tão drástica, e de consequências tão avassaladoras.
Chama a atenção, enfim, o papel da ciência nesse processo. Sendo chamada ao baile, para "justificar" o adiamento ou mesmo a transferência de um evento dessa magnitude há menos de 3 meses de sua execução em função de argumentos discutíveis. 
Ao mesmo tempo chama a atenção e nos dá profunda tristeza constatar que o Brasil não possui mecanismos capazes de produzir não apenas respostas práticas à epidemia de Zika Vírus, mas também argumentações que sejam capazes de dirimir tais incertezas. E que, além de tudo, ainda observamos o fim de inúmeros atores governamentais que poderiam exercer esse papel, como o já extinto Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Ao extinguir tal órgão de maneira tão absurda, nosso país jogou uma pá de cal na confiança governamental na ciência e tecnologia produzidas por aqui, sendo visto, assim, como um importante sinal para a comunidade internacional adotar esse tom mais duro em relação à dificuldade da realização do evento. 
       Com tristeza observamos a sociedade brasileira acabou acreditando na ideia do “complexo de tostines” (vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais) construída ao longo de décadas com relação à sua ciência. Ou seja, na ideia de que a ciência brasileira não produz porque não há investimento ou não há investimento porque a ciência brasileira não produz. Enquanto isso, parece que não teremos o direito nem do nosso comercial de margarina nesse filme de terror que se transformou o 2016.