segunda-feira, 21 de maio de 2012

O Historiador-exterminador do futuro



            Trabalhando na organização e produção de um café científico, me dei conta de que a vida do historiador moderno é, de fato, um dejeto insignificante (vulgarmente falando: uma merda!). Foi-se a época em que vivíamos felizes visitando arquivos e bibliotecas úmidas atrás de nossas fontes, com aquele ar de Sherlock Holmes. Não sou dessa geração. Muitas das fontes que utilizei até hoje estavam digitalizadas, tendo conseguido até mesmo arquivá-las em um CD, ou em um pen-drive. Engraçado: se estivesse escrevendo isso há dez anos, teria incluído os sepultados disquetes nessa lista.
            Em um café científico, o cientista discute um tema cotidiano com uma pessoa “não-cientista”. O púbico se diverte com os embates entre o “catedrático” e o “desletrado intelectual”. Estudos na área mostram, porém, que a interação entre o público e os entrevistados sempre foi um desafio, exatamente pelo receio de fazer uma pergunta incompatível a esses dois mundos aparentemente tão distantes. Pensando nisso, desenvolvemos uma interação diferente, por meio da tecnologia. Aí começa a história. Aí começa minha angústia!

           

            Agora me vejo às voltas com Mac’s, Ipad’s e blu-rays, tendo programadores e gerentes de projeto como interlocutores acadêmicos. Perdendo o sono com medo do nosso programa não funcionar na hora do café.
            E acabo me perguntando algumas coisas: será que damos o devido valor para a informação que produzimos hoje, em outras palavras, para o material de trabalho do historiador de amanhã? Você já se pegou pensando que vai precisar de um aparelho pra descompactar arquivos, de senhas pra acessar e-mails dos atores que serão objeto de suas pesquisas? Suas chances de sucesso serão muito aumentadas, se você for amigo do pessoal do Google! O historiador ainda vive e trabalha analógico na era digital! Incongruente, pois para ser historiador hoje é preciso saber mais do que História, é preciso saber formatar, transferir arquivos, criar sites, configurar softwares, instalar hardwares e mais o diabo a quatro!
            Minha angústia aumenta quando penso que devo me preocupar com isso, e percebo que não terei tempo e paciência, já que preciso (preste atenção no verbo: preciso) escrever artigos, escrever resenhas, escrever receitas de bolo, escrever bulas de remédio...  para o bem geral do lattesão!

           Vivendo entre dois mundos: o da história e o da “ciência” ou, se preferir: o analógico e o digital, sinto-me num “sem lugar”. Sei apenas que a estrada que caminho hoje está com seus dias contados. Ah, mas nem tudo está perdido! O tesão pelo conhecimento não será deletado dos nossos discos rígidos. Vamos continuar querendo saber (d) as coisas. Não quero precisar de viagra pra produzir conhecimento histórico! Bora pensar em como lidar com isso??     

sábado, 19 de maio de 2012

Quem quer ciência?


A ciência está no mercado. Quem pode comprá-la? Quem pode vendê-la? O final do século XX e o início do século XXI vivenciaram uma fase inédita na produção de ciência. Uma fase de crescimento, sem dúvida. Mas também de mudanças profundas na forma como a ciência é organizada, financiada, produzida e consumida. Ao longo da Modernidade, a imagem do cientista se transforma, junto com a ciência. O filósofo natural, o erudito, o intelectual e o expert passaram e deixaram suas marcas. Hoje, a imagem dominante é a do businessman scientist, o cientista empreendedor.


Craig Venter, busisnessman-scientist


O famoso bioquímico e mega-empresário das áreas de sequenciamento de genoma e engenharia genética. Pesquisador de ponta (responsável pelo primeiro grande feito científico do século, um código genético sintético) e investidor ousado. Essa é a imagem emblemática do cientista contemporâneo. Como, obviamente, nem todos foram como Newton no século XVII, nem todos são como Craig Venter. Mas isso não impede que muitos (a maioria) compartilhem do mesmo ideal, joguem o mesmo jogo. A palavra de ordem (da ordem neoliberal, fique bem claro) é: investir na carreira!

A pós-graduação é um investimento, o currículo é um investimento, publicar em uma boa revista é um investimento (não é à toa a reação contra a Elsevier e o surgimento de movimentos como o Open Science, diga-se). O sujeito neoliberal, empreendedor de si mesmo, capitalista da própria força de trabalho, também produz ciência. Mas para quem pode pagar por ela.

Produzida dessa forma, a ciência tem um público bem claro. Por exemplo: os remédios para doenças cuja maior incidência ocorre em áreas sem infraestrutura de saneamento, sem acesso a boas condições de medicina preventiva e de educação sanitária, dificilmente tem suas gerações atualizadas. E não é por que esses medicamentos chegaram à sua “fórmula ideal”. Medicamento, ciência, empreendimentos para quem? Enquanto isso, novos remédios para depressão são lançados regularmente, melhorando sua eficácia, diminuindo efeitos colaterais, ganhando novos espaços no mercado.

Para fazer outra ciência, talvez fosse necessário fazer outra sociedade... Quem quer essa ciência, afinal?