quarta-feira, 18 de julho de 2012

“Partícula de Deus” e outras figuras mitológicas 2: ciência por acaso



Na semana passada, vários jornais anunciaram a possível descoberta do Bóson de Higgs – a partícula de deus. Inúmeras matérias sobre os bósons e os prótons, sobre Einstein, sobre a teorias das cordas, sobre Física Nuclear, sobre o The Large Hadron Collider (LHC)... pipocaram na internet. Alguns canais de comunicação informaram a trajetória científica da possível descoberta e indicaram a trajetória daquele que seria o “dono da bola”, o físico britânico Peter Higgs.


Como maçãs que caem nas cabeças de gênios ou mãos que cruzam acidentalmente feixes radioativos de elétrons, Higgs teria tido seu momento de epifania “enquanto caminhava um fim de semana pelas Montanhas Cairngorm, na Escócia. Quando retornou ao laboratório, ele disse aos seus colegas ter tido sua ‘grande ideia’ e encontrado uma resposta para o enigma de porque a matéria tem massa (UOL).”

O parque natural de Cairngorn: belíssimo panorama para
uma“epifania” sobre a partícula de deus


Obviamente, a ciência não avança apenas por momentos “Eureka”. A ciência se desenvolve em laboratórios, com pesquisas, com pesquisadores, com trocas de conhecimento, com divulgação de métodos, com incentivos, com reconhecimento social, etc. Steven Shapin, professor de História em Harvard, tem uma frase interessante sobre a complexidade da produção de conhecimento: Há tanta ‘sociedade’ dentro do laboratório e do desenvolvimento do conhecimento científico quanto ‘fora’ dele”.


Mas nada disso é novidade. Os cientistas sabem que a ciência não é produzida pelo gênio maluco em seu laboratório subterrâneo, nem por epifanias desconexas. As grandes descobertas surgem, mas não do nada, ao acaso. Surgem em laboratórios, em congressoss, nas mentes de cientistas que as procuravam, e mais, que foram (en)formados para encontrá-las. Então, por que continuamos consumindo esses mitos sobre descobertas científicas ocasionais? Por que é necessário construir relatos do tipo: “era uma manhã calma e florida de primavera quando tive uma ideia que anos depois se consagrou...”? Por que sabemos sobre a maçã de Newton? Por que sabemos que Galileu lançou pesos da Torre de Pisa? Alguns desses relatos nada mais são que mitos criados para glorificar os cientistas, para engrandecer suas descobertas, para aumentar a popularidade de teorias, para alimentar o imaginário e promover o reconhecimento popular, para viabilizar e justificar gastos com pesquisa, para firmar campos do conhecimento e legitimar determinadas ciências. São mitos que nos foram passados como partes de uma história grandiosa, heróica, digna de um suntuoso roteiro hollywoodiano! Não por acaso, é necessário criar esse tipo de áurea sob a imagem dos cientistas, homens objetivos, calculistas, geniais, que concebem uma grande descoberta ocasionalmente em seu dia-a-dia, enquanto nós, não-cientistas, caminhamos todos os dias enquanto pensamos em aleatoriedades como esta:

 Em 5 de novembro de 1955, após uma queda no banheiro,  
Dr. Emmett Brown inventara o capacitor de fluxo, dispositivo que possibilitou
a viagem no tempo em De volta para o Futuro, trilogia de Steven Spielberg



Encontrar o Bóson de Higgs pode ter sido um grande passo. Mas encontrar a partícula de deus como em um belo roteiro cinematográfico, sim, justifica uma verdadeira epifania científica!



quinta-feira, 5 de julho de 2012

A “partícula de Deus” e outras figuras mitológicas



Nosso entendimento do Universo se tornou mais completo hoje. Pelo menos, é o que anunciam (e comemoram) os cientistas do CERN (Organização Européia para a Pesquisa Nuclear). Depois de alguns anos de pesquisa intensa e alguns bilhões de dólares envolvidos no projeto, o tão aguardado “Bóson de Higgs” – a “partícula de Deus” – foi descoberto. Apesar de ainda falarem em “resultados preliminares” e insistirem na necessidade de novos experimentos, a excitação é evidente.

Em um comunicado divulgado à imprensa, a despeito do tom reticente, o diretor do mais importante laboratório de físicas de partículas do mundo qualificou de “histórica” a descoberta realizada pelos pesquisadores de um dos projetos que ocupam o LHC, um gigantesco acelerador de partículas instalado cem metros abaixo da superfície de Genebra, na Suíça. A partícula que ocupou os noticiários de ciência e tecnologia hoje tem importância fundamental para a atual explicação do Universo, o chamado Modelo Padrão. Não quero explicar a teoria física vigente. Não quero falar do “Bóson de Higgs” (quem quiser, pode ler mais aqui). Quero falar da “partícula de Deus”.



Imagem da dispersão de partículas de alta energia a partir da colisão de dois prótons

            Ao contrário do que somos inclinados a pensar, a ideia de dar um apelido impactante para uma partícula esotérica presente nas teorias herméticas da física contemporânea não surgiu da mente de um jornalista de ciência preocupado com a aridez dos temas que trata. Pelo contrário, a expressão “partícula de Deus” foi cunhada pelo eminente físico Leo Lederman, ganhador do Nobel de Física em 1988.

            E esse não é o único exemplo. Albert Einstein ficou famoso por suas metáforas teológicas. O astrofísico George Smoot comparava, em 1992, o momento do Big Bang à visão do “rosto de Deus”. Além disso, podemos encontrar, em uma região da Nebulosa de Águia, os “Pilares da Criação”, enormes estruturas de gás e pó que dão origem a diversas estrelas e planetas.Todas essas metáforas são obras de cientistas.




Os “Pilares da Criação” da Nebulosa de Águia

O LHC, a maior máquina já criada pelo homem, não se resumo a um gigantesco túnel de 27 km de circunferência (embora isso já seja bastante impressionante). Para funcionar, ele precisa estender sua rede para muito além das paredes subterrâneas do laboratório. Precisa ampliar sua influência por toda Europa e além do Atlântico em colaboração com pesquisadores e universidades do mundo inteiro – do Brasil, inclusive. Precisa convencer o Parlamento Europeu a liberar milhões de euros em fundos anuais. Precisa, enfim, da legitimidade conquistada junto à imprensa e à opinião pública.


Depois do anúncio da descoberta do Bóson de Higgs, o que vai ser feito com o LHC?

Em uma época onde as “aplicações práticas” do conhecimento científico são exigidas em prazos cada vez mais curtos, a pesquisa em áreas como a física de partículas – que exigem altíssimos investimentos e cujos resultados tecnológicos são visíveis a médio e longo prazo (algo que só é permitido à física, em muitos casos) – precisa descobrir novas maneiras de ressaltar a sua importância. Fazer lobby sempre foi uma das atribuições fundamentais do cientista. Em cada situação, em cada época, em cada ciência, variam as formas como os cientistas atraem o público, a política e o financiamento para a sua pesquisa. Em homenagem aos Médici, Galileu chamou de Medicea Siderea as recém descobertas luas de Júpiter.

Por isso, não devemos nos surpreender com o apelo de áreas como a astrofísica ou a física de partículas à metáforas que evidenciem a importância das descobertas, que chamem a atenção da mídia, que lembrem constantemente aos políticos e órgãos de financiamento que a ciência tem um valor intrínseco. A metáfora cumpre seu papel quando ativa um imaginário ocidental subterrâneo, que de vez em quando se manifesta, sempre de formas diferentes, se recombinando em função do contexto histórico. Obviamente, não estamos se trata de uma metáfora qualquer, mas de um recurso ao poder divino de criação do mundo.

Encontrar “Bósons de Higgs” custa muito caro, procurar pela “partícula de Deus” vale a pena.