domingo, 8 de junho de 2014

Ciência na Copa: um exoesqueleto entre ciência e sociedade



12 de junho de 2014 tem tudo para marcar milhões, quiçá bilhões de pessoas ao redor do planeta. Será a abertura da copa do mundo, no “país do futebol”, certo? Sim, certo! Mas não apenas por isso. Também nesse dia um pesquisador brasileiro radicado nos EUA, o “país da ciência” irá apresentar ao mundo o que tem tudo para significar um avanço científico notável: um exoesqueleto será o responsável por fazer um tetraplégico dar o “pontapé-inicial” da copa das copas.
      
Lindo, não?! Assistindo aos telejornais – esportivos ou não – o assunto é sempre abordado, num misto de curiosidade e patriotismo ingênuo (quem nos dera se tal tecnologia pudesse ter sido desenvolvida aqui). O cientista é brasileiro, dizem uns. É palmeirense roxo, dizem os mais exaltados. Não vamos entrar no mérito pessoal da figura de seu expoente, Miguel Nicolelis, que chegou até mesmo a firmar o que chamou de “Manifesto da Ciência Tropical” há alguns anos atrás (https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/25621/1/Rog%C3%A9rio_Barbosa_FEUC_2014.pdf)
      
O que nos chama a atenção é a frase final de quase todas as reportagens abordando o assunto: “A intenção do projeto é a de aproximar a ciência da população”. Ah, vá!... que ciência, de que população, cara-pálida?!
   
Vivemos num país em que a ciência é tratada com desrespeito por universidades, por políticos, e até mesmo por “cientistas” ao que parece. Vivemos num país que assistiu um de seus presidentes dizer com todas as letras que o “Problema dos Transgênicos” – borbulhante e seriamente travado em várias partes do mundo – era coisa de cientistas, e a eles cabia a decisão quanto aos rumos da questão por aqui. Vivemos num país, por fim, em que a ciência é coisa de “gente doida”, gente de branco, branca, rica, estrangeira, que nos diz o que fazer, como fazer, onde fazer, etc. Em suma: ciência é algo estereotipado, na mais pejorativa acepção do termo.


O projeto de Nicolélis se enquadra no que se poderia chamar de “Divulgação Científica”, que em outros momentos já foi chamado "Difusão Científica", atividades desenvolvidas desde o nascimento da “Ciência Moderna”. Ocasiões de gala eram preparadas para demonstrações pomposas dos segredos da natureza para o “público leigo”. De lá para cá, todo “avanço” científico passou a ser mais ou menos acompanhado por uma sociedade mais ou menos por eles interessada. Mais ou menos a relação do Vampeta com o Flamengo: "fingem que me pagam e eu finjo que jogo!".



No século XX observam-se tentativas teóricas mais rebuscadas de compreensão dessa relação envolvendo ciência e sociedade. Modelos são desenvolvidos para tentar compreendê-la. Bruce Lewenstein, por exemplo, diz que o “Modelo do Déficit” é o Rei dessa Praia. O cientista, dotado de um saber hermético e rebuscado, usa de sua benevolência angelical e brinda a todos por ele escolhidos com os segredos da ciência que pretende (ou quer) demonstrar. Já se viu nessa situação? Se vê nessa situação no dia 12? Qual a diferença dela para esta aqui, em que Eliana e seus cientistas adestrados mostram como a voz de Alexandre Pires se modifica através dos “mistérios da ciência”? https://www.youtube.com/watch?v=HfKp7Q91Bs0

A situação porém começa a se modificar. A sociedade se desenvolve dinâmica demais para aceitar por muito mais tempo tal relação platônica. Gradativamente vai surgindo a área da Comunicação Científica, que tende a abarcar uma relação mais homogênea entre ciência e sociedade. Comunicar significa dialogar, dialogar significa escutar e reconhecer o outro. Na divulgação científica do “déficit” isso não acontece satisfatoriamente, do ponto de vista da sociedade. Esta última está sempre passiva, assistindo e batendo palmas para o show que o cientista apresenta.

Já imaginou o que significa para um cientista ser aplaudido por um estádio de futebol, na abertura de uma copa do mundo? Mais uma vez afirmamos, não se trata de dizer que Nicolélis é oportunista ou algo que o valha. Nem se o conhecêssemos pessoalmente faríamos tal julgamento. O que ele quer pode – e deve – ser, de fato, levar a ciência para a sociedade. Deve ter mesmo as melhores intenções! Só estamos chamando a atenção aqui para o fato de que o que ele acaba fazendo é cristalizar o cientista na posição de detentor de um saber inatingível e a sociedade de posição de espectadora de um espetáculo cujo enredo ela não participou, e na esmagadora maioria das vezes não lhe interessa. Ora, mas fazer isso é melhor do que nada, dirá você mais exaltado! Sinceramente, acreditamos que não. O nada é um campo mais profícuo do que um outro já semeado por sementes transgênicas da Monsanto.

Por que não chamar para o “Pontapé Inicial” da copa algumas crianças que tiveram sua expectativa de vida aumentada em alguns meses pelas pesquisas do GENETON, o primeiro laboratório farmacêutico sem fins lucrativos da história (http://www.genethon.fr)? Por que não chamar membros das centenas de “Conferências de Consenso” existentes em várias partes do mundo, que se informam, discutem e tomam decisões acerca dos rumos das políticas públicas envolvendo a ciência e sua vida cotidiana? Eles também “aproximam a ciência da sociedade”, certo? Ora, mas são iniciativas europeias, que dificilmente serão implantadas num país como o nosso... sem cultura, sem infraestrutura, etc., certo? Pode até ser verdade. Mas não nos esqueçamos que a ciência se faz através de problemas. Logo, meu amigo, o Brasil é campo fértil pra ela! E mais: haveria oportunidade melhor para levantar tais bandeiras do que na abertura de uma copa do mundo por aqui?  

A ciência não pode mais ser vista como imaculada. O cientista não pode mais ser encarado ou como santo ou como o louco que “de tão inteligente é meio bobão”. E, especialmente, a sociedade não pode mais ficar estática sentada no sofá engolindo tudo goela a baixo o que esses cientistas fazem e divulgam. 

A culpa não é de Nicolélis, enfim. Não se trata de culpabilizar ninguém. O que precisamos é construir uma relação, DE FATO, entre ciência e sociedade. Como? De que jeito? Com quais atores?...    

Pronto, agora você pode se deixar levar e dizer a frase que está doido para dizer: deixa eu ver meu futebol em paz! A copa vai começar! Sai daí o exoesqueleto de m...

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